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TRONCO A FORMAR PONTE SOBRE O RIO 

Por Elvira Vigna  |  2015

O uso de objetos reais em contextos ficcionais (desenhados) que César Brandão usa no seu Tronco a formar ponte sobre um rio
(ed. Motirô/Funalfa, 2015) me parece de fato formar uma ponte. Outra. Uma entre duas vertentes presentes nos livros de hoje de modo geral e nos de criança também (o livro de César foi dirigido, embora não só, para crianças). As vertentes são o realismo e o romantismo. Ainda. Desde o XVIII, pois é, e ainda precisando de ponte.

 

Mas se atualiza, essa velha celeuma, com a questão tão atual dos fundamentalismos. Pois quando se usa uma coisa, obrigando-a a seguir um “destino” não previsto – por exemplo, ficar lá, em cima de uns rabiscos – o que se está falando é de Platão. De algo ou alguém capaz de determinar o destino dos pequeninos. De nós.

 

Bem, mas aí, a arte, toda ela, não só a de César, entra no bolo.

 

Ídolos de madeira africanos estão mais perto de Michelangelo
do que toda a arte acadêmica, que procura uma excelência formal. Os cantos de orixás são próximos de Bach. O teatro de marionetes, com sua obediência/desobediência explícita,
pode oferecer uma catarse que o teatro de palco europeu não consegue.

 

É uma questão de definição do acontecimento estético.
Tem de ser transformador ou não é acontecimento estético.

Então, o livro do César Brandão:

1) – Apesar de um platonismo no questionamento de aparência/essência;

2) – Apesar da obediência a um formulador de leis (o artista que pega a lagartixa e põe ela em outra estrutura de vida);

3) – Apesar de – por causa mesmo do 1) e do 2) –  não haver convite possível para uma coautoria transformadora do leitor;

 

Apesar da explicitação, então, de seu caráter hierárquico que aponta para um ser superior, o livro propicia uma experiência estética transformadora, e o faz justamente e contraditoriamente pelo mesmo motivo que aparentemente a afastaria disso: as duas instâncias de sua estrutura narrativa estando sempre presentes, embora uma visível (as coisinhas, pegadas aqui e ali) e outra mais ou menos escondida (quem pega).

Hoje não mais há uma divisão entre artes ou práticas artísticas. E há um acolhimento por seres ou situações artificiais ou do nível do fantástico. Além disso, não há mais divisão clara entre arte erudita e popular. Ou, por falar nisso, entre livro para criança ou não. E o Contemporâneo pode ser entendido como uma Arte Modesta, em uma ironia sonora com a expressão Arte Moderna.

 

O livro de César, então, coloca questões específicas do Contemporâneo:

- A coisinha ali, em cima do desenho, existiria sem o artista?
Ou, dito de outra forma, a arte existe independente de controle?

- Como manter o posto privilegiado da arte, característico do Moderno, em um acontecimento sem bordas, um papel sem margem?

 

Li um livro recente do qual lembrei ao ler o livro do César Brandão.

Reproduzo um trecho:

“Na segunda tarde, dirigi-me à saleta onde ficavam guardadas as marionetes e entrei. Fui direto à grande arca de couro encostada na parede e abri a tampa. Não havia nada lá, a não ser as tiras de pano usadas para proteger as peças, evitando riscos na madeira entalhada e o desgaste das pinturas, de cuja delicadeza eu lembrava bem. Não havia nada do que eu procurava. Um único boneco, a torre do castelo, uma corda do violino sequer. (…) Debruçado sobre a arca, retirando fragmentos de peças, pedaços de tecido, bolas de papel amassado para a forração, cheguei a fotografias muito antigas da família, em tal nível de desgaste que precisei acender a luz e ajustar os óculos para descobrir quem eram as pessoas.”

O livro é A casa das marionetes (ed. Reformatório, 2015),
de José Santana Filho.

 

O narrador passa o livro todo refazendo essa ponte com o passado, uma marionete ao contrário, um presente a determinar quem o fez, e como. Um boneco a puxar seus próprios fios.

 

A ponte de César é frágil, é feita de coisinhas, traços de lápis.
Do tamanho de todos nós, os imperfeitos, os modestos.
E nos leva até aquilo de que precisamos para viver.


(*) Elvira Vigna é escritorailustradora e jornalista brasileira. Tem vários livros publicados e alguns prêmios, como o de ficção da Academia Brasileira de Letras, Oceanos em 2015, APCA em 2016, e prêmio Jabuti de literatura infantil – setor a que se dedicou no início de sua carreira. Tem também um Jabuti como ilustradora. Em seu site mantém para leitura livre os seus textos fora de catálogo.

Adolfo Montejo Navas

FOLHA DE S.PAULO  |  28 de novembro de 2015

Há livros infantojuvenis que jogam na fronteira da idade, com seu destino compartilhado pelos adultos, a exemplo desta obra de César Brandão, artista mineiro sui generis que elaborou um livro limítrofe, de imagens-margens que acasalam fotografia, objetos, desenhos e elementos da natureza, no qual o ascetismo e a simbiose cultura-natureza exala certo ar de “arte povera”.

 

O mais importante nele, muito mais do que o texto – que nunca chega a ser correlato exato da visualidade –, é precisamente essa comunhão flutuante (objetualidade e natureza casadas por meio do desenho), já que a história é sobretudo imagética, que funciona de forma errática, com a ajuda de “fotografias movediças” e ilustrações objetuais que são obras autônomas: “estímulos visuais ao imaginário”, como aponta o autor.

 

Um convite à imaginação, portanto, como leitura da passagem histórico-mitológica dessa ponte que o livro estabelece sobre as águas das páginas.

 

AUTOR:    César Brandão

EDITORA: Funalfa / Motirô

QUANTO:  (48 págs.   R$ 37)

AVALIAÇÃO:  ÓTIMO

 

Adolfo Montejo Navas (61 anos, é poeta, crítico de arte, curador independente; nasceu em Madri, Espanha, e mora no Brasil há 20 anos).

 

 

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